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Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas? 

Por Jonas Rabinovicht, na Gazeta do Povo

Poucas coisas mudam tanto uma vida como um diagnóstico de câncer. De um dia para outro, minha compreensão sobre a vida alcançou níveis inéditos. Essa compreensão aconteceu de forma paradoxal: por um lado, através da espiadela involuntária em minha própria mortalidade, ganhei um novo senso de humildade. Virei pó. Por outro lado, é como se eu tivesse instantaneamente adquirido um superpoder. Estou flutuando bem acima das inúteis baboseiras do dia a dia.

Resolvi chamar isso de flutuância – não confundir com “flatulência”.  Posso até escrever flutuânsia, com “s” mesmo, é mais apropriado. Se a ansiedade é um medo do futuro, a flutuânsia seria a leveza trazida pela ausência dele. É uma espécie de desapego forçado. De um dia para outro, flutuando, alcancei uma dimensão de espiritualidade inteiramente nova, porque, de repente, tudo importa e nada mais importa.

Para que dinheiro? Para que orgulho? Para que ciúme? Para que raiva?  Por outro lado, o amor que eu sinto por aqueles que espontaneamente me querem bem se intensificou exponencialmente em gratidão. Por isso é importante que não sintam pena. Estragaria a mágica e a espontaneidade.

O fato dos meus pés estarem sendo puxados por anjos não significa que desisti. Pelo contrário, agora é que a briga vai começar. Para quem se interessar, vou manter todos informados em um diário de fim de vida.  Parafraseando Tolstoi, as histórias felizes são todas iguais; mas cada história triste é triste à sua maneira. Não sei como isso vai terminar.  Ninguém sabe. Todo mundo sabe. Mesmo sem saber os detalhes do que vai acontecer, há um sentimento de despedida, de fim de festa, de busca pela essência. Chega de perder tempo com bobagens. Como disse Mark Twain: “Os dois dias mais importantes da sua vida são o dia em que você nasce e o dia em que você descobre o porquê”.

“O filósofo Epiteto, nascido no ano 50 D.C. passou a maior parte de sua vida como escravo de um assessor do imperador Nero na Roma antiga. Ele disse que não são as coisas que nos perturbam, mas nosso julgamento sobre as coisas”

Que o paraíso não me leve a mal, mas, se eu tiver escolha, vou lutar feito um condenado para continuar aqui mesmo, nesse inferno terreno, com todas as suas privações, recompensas, motos barulhentas, boletos, gente que derruba árvores para ganhar dinheiro, políticos corruptos que só querem poder, motoristas agressivos, egos em conflito, trânsito aflito, país em crise, falhas de expertise, atropelamentos e sessões de cinema. 

Misturei a humildade do pó com a essência líquida da flutuânsia e obtive uma poção mágica. Ao beber essa poção mágica me transformo no Dr. Moléstia! Dr. Moléstia: santa panaceia para as agruras da rotina.  Sem bullshit, sem dourar a pílula, sem adoçar a amarga quimioterapia que me espera na esquina. Ao mesmo tempo, sem autocomiseração ou falsa coragem, posso enunciar altivo: estou me c de medo.  Mas, como disse Sêneca: “Aquele que teme sofrer, já sofre pelo que teme”. 

Lembro as famosas palavras da amante de Luís XV, Jeanne du Barry, sendo impiedosamente colocada na guilhotina em 1793: “Por favor, Sr. Carrasco, apenas um momento a mais!“.  Se a vida é feita de momentos, como queria Madame du Barry e o grande poeta argentino Jorge Luis Borges, o melhor que posso fazer nesse momento é apoiar todos aqueles que sofrem coisas ruins mesmo sendo pessoas boas. Ou que sofrem por terem pessoas queridas passando por sérios problemas de saúde. 

Os destinos dessas pessoas são arbitrariamente determinados por fatores absolutamente aleatórios que parecem zombar do significado de suas vidas. Não sou supersticioso nem religioso. Não acredito em urucubaca ou mau-olhado. Por outro lado, seria muita prepotência achar que Deus está implicando comigo porque eu deveria ser mais religioso. Não levo isso pessoalmente. Ao mesmo tempo, sem julgar nada ou ninguém, tenho um imenso e sagrado respeito pela fé de cada um, graças a Deus.

O universo não tem propósito, mas nós podemos ter. As tragédias que acontecem conosco são aleatórias, nós é que devemos impor um significado a elas. O filósofo Epiteto, nascido no ano 50 D.C. passou a maior parte de sua vida como escravo de um assessor do imperador Nero na Roma antiga. Ele disse que não são as coisas que nos perturbam, mas nosso julgamento sobre as coisas.

Quanto à crucial pergunta “Por que eu?”, o rabino Harold Kushner disse que uma pergunta melhor seria: agora que isso aconteceu comigo, o que vou fazer a respeito?  Segundo ele, a resposta deveria diminuir a onipotência divina ao enfatizar laços entre as pessoas.  Concordo 100% com ele, sempre achei que Deus se manifesta, ou não, pela forma como tratamos os outros.

As notícias a cada dia nos lembram que também há muitas pessoas egoístas e indiferentes. E o mais perturbador é que há pessoas brutalmente cruéis para quem suas ambições pessoais sempre justificam os meios. Esse é o miserável significado de suas vidas. Um dia receberão a visita do Dr. Moléstia. 

Mas, felizmente, a grande maioria das pessoas tem um bom coração e é atenciosa, e todos podem ser ensinados a se relacionar com as tragédias e as perspectivas dos outros. Se você tentar incluir isso entre os propósitos de sua vida, a minha não terá sido em vão. 

Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior em inovação, gestão pública e desenvolvimento urbano da ONU em Nova York.

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