Cinco séculos depois, a redescoberta de Aleixo Garcia e o Caminho de Peabiru em Santa Catarina
Premiado sobre Rota Turística do Caminho de Peabiru em Santa Catarina chamam atenção para o misterioso percurso histórico
O tema da viagem do explorador português Aleixo Garcia, que caminhou 3.000 quilômetros do litoral catarinense até o território inca, no Alto Peru (atual Bolívia), em 1524, volta à baila neste momento – e motivos não faltam para isso. A razão mais óbvia são os 500 anos da aventura, que reforça a curiosidade e o interesse pelo chamado “caminho de Peabiru”, que ele usou então, seguindo uma rota que os povos originários conheciam como a palma da mão.
Em Palhoça, estrada que seria a antiga trilha dos índios guarani-massiambu – Foto: REPRODUÇÃO/ND
Outro fator foi a premiação, em 2023, do curta-metragem “De Meiembipe a Chuquisaca – A Descoberta do Império Inca”, de Carolina Borges de Andrade, no Festival de Cinema Agroecológico do Rio de Janeiro. O assunto voltará a ser abordado num telefilme e num longa-metragem em fase de viabilização financeira, pela mesma equipe do curta. Por fim, repercute a aprovação e a assinatura de uma lei polêmica que criou a Rota Turística do Caminho de Peabiru no Estado de Santa Catarina, incluindo cidades que nunca fizeram parte do roteiro original.
Em todos os casos, as atenções se voltam para a jornalista Rosana Bond, 70 anos, que escreveu o livro – já um clássico – “A saga de Aleixo Garcia – O Descobridor do Império Inca” a partir de pesquisas feitas no Brasil, Paraguai, Bolívia e Peru. Garcia naufragou em 1516 próximo à saída da baía Sul, na Ilha de Santa Catarina, quando integrava a expedição do navegador espanhol Juan Díaz de Solís. Ele foi adotado pelos índios do Massiambu, no atual município de Palhoça, e alguns anos depois, já “guaranizado”, partiu com alguns homens brancos e mais de 2.000 nativos atrás de metais preciosos no altiplano andino.
Para chegar lá, Aleixo e seus companheiros usaram troncos do Caminho de Peabiru, uma série de rotas que partiam do litoral brasileiro – de Cananéia, em São Paulo, ao Morro dos Cavalos, em Santa Catarina – e que diferentes nações indígenas usaram durante séculos em seus deslocamentos. Os nativos alimentavam o mito da “terra sem mal”, em pontos distintos do continente sul-americano – o Atlântico, a região entre o Mato Grosso e a Cordilheira dos Andes e o Pacífico, locais onde o sol nascia, ficava a pino e se punha, no fim do dia. Os caminhos pareciam indicar a permanente busca pelo paraíso sonhado.
Caminho mapeado pelos historiadores revela os três troncos no Brasil – Foto: REPRODUÇÃO/ND
O que moveu Aleixo Garcia, no entanto, eram o ouro e a prata que os indígenas garantiam existir em abundância no interior do continente. Ele atravessou parte de Santa Catarina (esse tronco começava na foz do rio Itapocu, próximo a Barra Velha), o Paraná e o Paraguai, chegando à Bolívia, onde amealhou boa quantidade de tesouros.
No retorno, foi morto na localidade onde fica hoje San Pedro del Ycuamandiyú por indígenas paraguaios, que se apossaram de metade da carga – a outra, enviada antes, chegou ao destino com parte da comitiva que acompanhava o explorador.
O cinema e as novas abordagens do assunto
O filme “De Meiembipe a Chuquisaca – A Descoberta do Império Inca” tem 25 minutos e narra, mesclando documentário e animação (pela falta de iconografia sobre a aventura de Aleixo Garcia), o que teria sido a viagem do Atlântico até o Alto Peru, dando início a uma corrida de europeus atrás da prata dos Andes. A direção é de Carolina Borges de Andrade, a direção de arte e as ilustrações couberam a Eloar Guazzelli, Alexandre Peres de Pinho respondeu pela produção e a animação ficou sob a responsabilidade de Lucas Feitosa.
A diretora do filme, Carolina Borges de Andrade; a jornalista e escritora Rosana Bond; e o diretor de produção do filme, Alexandre Peres de Pinho – Foto: LEO MUNHOZ/ND
As pesquisas de Rosana Bond – ela escreveu seis livros relacionados a Garcia e ao império inca – foram a matéria-prima usada no roteiro do curta.
O filme, feito em 2018, havia ganho o Prêmio Catarinense de Cinema, que viabilizou a produção, e é a base para um telefilme sobre o mesmo tema, previsto ainda para este ano, e um futuro documentário sobre Mencia Calderón Ocampo, nobre espanhola que se tornou exploradora e foi a primeira mulher a fazer uma expedição pelo Rio da Prata, no século 16.
Os realizadores do curta-metragem não apenas entrevistaram historiadores no Brasil, Paraguai e Bolívia, incluindo o jornalista e escritor Eduardo Bueno (Peninha) e um dos maiores “guaraniólogos” do mundo, o espanhol naturalizado paraguaio Bartolomeu Meliá (1932-2019), como refizeram a via rodoviária de parte da viagem de Aleixo Garcia.
“Por meio do filme é possível perceber o intercâmbio entre guaranis (terras baixas do continente) e incas (terras altas)”, afirma a diretora Carolina de Andrade. “É imprescindível para a identidade brasileira, especialmente do Sul do Brasil, o conhecimento da riquíssima história desse período”, reforça.
Maratona atrás de fontes sobre a grande aventura
Tão intrigante quanto o Caminho de Peabiru, que teve diferentes troncos no Brasil e nos países vizinhos, foi o script que levou a jornalista Rosana Bond a se embrenhar num tema pouco difundido no Brasil – porque, segundo ela, interessava aos portugueses apagar o feito de Aleixo Garcia e de outros exploradores no primeiro século após o descobrimento.
Ilustrador e quadrinista Eloar Guazzelli assinou a animação – Foto: LEO MUNHOZ/ND
Ela trabalhava na área de comunicação da prefeitura de Campo Mourão (PR), em 1995, quando o prefeito da cidade a instigou a ir atrás das pegadas de Garcia, que teria passado pela região no século 16. A intenção era escrever um livro sobre o tema para as escolas do município.
Quando estudante, em Curitiba, a jornalista leu dois parágrafos sobre o Peabiru num livro didático, e eles nem citavam os guaranis como protagonistas da história. Procurou em bibliotecas, universidades e institutos de pesquisa, até ser informada de que encontraria o que procurava em Assunção, capital do Paraguai. Foi de ônibus de linha e já na chegada, numa feira de livros, topou com dezenas de volumes sobre a saga de Aleixo e seus acompanhantes.
O país vizinho vivia sob a ditadura de Alfredo Stroessner, e ela sentiu que não era bem-vinda ali como jornalista investigativa. Por outro lado, muitas portas se abriram, porque se dizia nas ruas que “Alejo García és nuestro descubridor”. Acabou sendo recebida pelo padre jesuíta Bartolomeu Meliá, grande estudioso dos guaranis, que não costumava dar entrevistas. Depois, teve acesso a centenas de obras raras na Universidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, onde copiou muita coisa dos documentos originais, alguns deles jamais tocados por algum pesquisador. “Eu não queria mais vir embora”, conta ela.
A memória prodigiosa dos guarani
Em Assunção, Rosana Bond aprendeu que não seria possível escrever sobre a saga de Aleixo Garcia sem entender a fundo a alma guarani. “O acolhimento desse povo viabilizou a ocupação do continente, e isso foi encoberto pela história”, diz ela.
“Os antropólogos ficam assombrados com a memória dos guarani, que após cinco séculos ainda relatam fatos como a presença dos navegadores na costa brasileira. Foram séculos ou milênios de deslocamentos, por isso se pode dizer que eles são um povo caminhante, e que o caminho é algo sagrado para eles.”
Já o império inca, que surpreendeu os espanhóis pelo grande conhecimento acumulado, teve seu auge dos séculos 13 ao 16, quando decaiu em função da chegada dos europeus. Os incas não viam os metais preciosos como símbolos de riqueza material, mas como um recurso de aproximação, dentro do que os antropólogos chamam de “diplomacia do presenteamento”. Com o ouro e a prata eram abundantes em seus territórios, faziam agrados às tribos e nações rivais antes de realizarem ataques para assegurar ou ampliar seus domínios.
Assim como os produtores do filme, Rosana Bond também chegou a percorrer trechos da rota de Peabiru, denominação que remete à ideia de “caminho gramado amassado”. Eram estradas de cerca de 1,60 metro de largura e profundidade de 40 centímetros, cobertas com gramíneas cujas sementes grudavam nas roupas e calçados dos viajantes.
No Paraná, existe um município chamado de Peabiru, criado na década de 1940, que é mais uma referência ao célebre caminho percorrido por Aleixo Garcia e seus homens. Quase todos os vestígios da estrada ancestral foram cobertos por rodovias, ferrovias e lavouras de soja.
Uma lei que afronta a história real
Uma briga que a jornalista Rosana Bond comprou com a classe política catarinense tem a ver com a aprovação de uma lei (nº 18.635/23), pela Assembleia Legislativa, que institui a Rota Turística do Caminho de Peabiru no Estado de Santa Catarina. O projeto é do deputado Fernando Krelling e foi assinado pelo governador Jorginho Mello em 7 de fevereiro do ano passado.
Para Rosana, trata-se de “um engodo”, porque as cidades de Garuva e Joinville, por exemplo, nunca fizeram parte de qualquer tronco do caminho de Aleixo Garcia ou de outros exploradores.
A partir de um projeto do vereador Henrique Deckmann (MDB), de Joinville, o deputado elaborou o projeto e o submeteu a seus pares, na Alesc. “Uma politicagem menor tem tentado falsear a saga de Aleixo Garcia”, diz a jornalista.
“Isso é péssimo para nós, catarinenses, que arcamos com os gastos da confecção de uma lei inútil”, reforça. Agora, ela aguarda ansiosamente a marcação de uma audiência pública destinada a discutir e corrigir os equívocos contidos na lei.
Em Santa Catarina, o caminho se fazia pelo rio Itapocu, passava por Barra Velha, São João do Itaperiú, Guaramirim, Jaraguá do Sul e Corupá. “Existem cerca de 30 documentos manuscritos, dos anos 1500 e 1600, informando que o caminho dos índios (Peabiru) era pelo Itapocu. Tais textos foram encontrados pelo pesquisador Fábio Krawulski Nunes, de Jaraguá, e estão registrados em cartório”, diz a jornalista.