Invasão de privacidade: a febre dos nudes se prolifera na internet
Apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, mais de 7,5 mil pessoas tiveram fotos ou vídeos indiscretos vazados entre 2019 e 2023
Cerca de 7,5 mil pessoas foram vítimas de vazamento de nudes entre 2019 e 2023, apenas nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. As mulheres representam 85% dos casos, sendo que 288 delas são adolescentes ou crianças. As informações foram obtidas por meio da Lei de Acesso à informação pelo portal G1.
Ainda de acordo com o levantamento, 75% das vítimas apontaram uma relação de amizade, familiar ou amorosa com o propagador do conteúdo. A quebra da relação de confiança e a tentativa de humilhar a vítima são classificadas como “pornografia de revanche” e são utilizadas para aumentar a pena.
O vazamento de fotos íntimas na rede mundial de computadores é considerado crime. A prática consiste no compartilhamento de fotos ou vídeos de uma pessoa sem a sua permissão.
A advogada especialista em Direitos Humanos e Penal Mayra Cardozo, que também é mentora de Feminismo e Inclusão e líder de empoderamento, comentou o que classifica como “febre” do vazamento de nudes.
De acordo com a especialista, expor e registrar imagens íntimas sem autorização tornou-se crime previsto no Código Penal a partir de 2018. A lei 13.772/2018 conhecida por lei Rose Leonel, pune o registro não autorizado, incluindo montagens. Já a lei 13.718/18, penaliza pela divulgação de cenas de estupro, sexo ou pornografia sem o consentimento da vítima.
Sobre a exposição das imagens, também aplica-se a Lei 13.718/18, no artigo 218-C do Código Penal. Conforme a redação, expor imagens íntimas de terceiros pode acarretar de um a cinco anos de prisão, além de indenização por danos morais e materiais à vítima.
A advogada Mayra Cardozo explica os três tipos penais que regulamentam o tema. “A primeira é quando você só registra a foto de uma pessoa nua, sem consentimento, aí responderia podendo ser condenado a reclusão de seis a 12 meses, acrescidos de multa. Se você divulga essa imagem, está sujeito a pena de um a cinco anos, além de indenização por danos morais e materiais, previstas no artigo 218-C. Agora, se você utiliza essa imagem como uma forma de ameaçar a vítima para que ela te entregue outras (imagens), pode se enquadrar na conduta de estupro virtual, cuja pena é bem mais alta e equipara-se à pena do estupro, de seis a 10 anos de reclusão”, detalha.
Efeitos
Pesquisadores da Fiocruz Minas investigaram os efeitos do vazamento de imagens íntimas, como nudes, na saúde mental das vítimas. Após o compartilhamento de conteúdos do gênero, a equipe observou diferentes danos, como transtornos alimentares, depressão e tentativas de suicídio.
A neuropsicóloga Andrea França destaca a importância de as pessoas não apenas buscarem por justiça, mas, também, por terapia, principalmente em casos com menores de idade, que devem ser acompanhados e aconselhados pelos pais.
“Quando uma pessoa manda um nude para outra, geralmente é porque existe uma relação de confiança. E quando isso é quebrado, causa um trauma por ter sido enganada e tido sua privacidade invadida. Ter a intimidade exposta provoca uma sensação de vulnerabilidade e desamparo. O que gera um stress pós-traumático, ansiedade, além de agravar casos de depressão”, explica.
“Quanto às crianças, existe a necessidade de orientar a não deixar ser fotografado ou filmado por estranhos. Os pais devem estar atentos aos contatos dos filhos. Muitas vezes, em um primeiro momento, elas não entenderão as consequências dessa exposição, mas isso pode ter consequências futuras, como dificuldade em confiar nas pessoas e problemas de auto estima”, afirma a profissional.
Conforme dados obtidos de boletins de ocorrência, uma parcela dos denunciados são familiares. Em 71% dos casos não foi observada relação da vítima com o criminoso. Nos registros em que a relação de proximidade é comprovada, a punição pode ser agravada.
“O principal fator conhecido é o chamado de pornografia da vingança. Geralmente, quando uma pessoa divulga um nude da outra, ela faz isso no intuito de se vingar, seja por conta de um relacionamento mal terminado ou por uma situação da qual ela não gostou. Outros motivos estão ligados à cultura patriarcal e à objetificação dos corpos, como aqueles grupos de masculinidade tóxica, em que um compartilha uma foto para se gabar e trazer essa falsa virilidade”, esclarece a advogada Mayra Cardoso.
Para a especialista, a questão é fruto da sociedade que objetifica o corpo feminino, o que justifica o maior número das vítimas serem mulheres — mas não impede que aconteça com homens. Outro ponto observado por Mayra refere-se aos casos envolvendo crianças. Segundo a advogada, o combate à pornografia infantil também gira em torno do combate à divulgação de fotos de nudez de crianças, classificadas como mais vulneráveis.
Compartilhamento
Quanto ao perfil dos criminosos, a advogada destrincha. “Para mim, o padrão mais comum é que a pessoa que registra — que em tese cometeria um crime autônomo —, é a mesma que compartilha e que divulga. Então, incidiria nas duas condutas”, detalha.
“O que percebo é que, muitas vezes, a vítima sequer tem conhecimento de que essas imagens foram veiculadas, porque é comum que as postagens ocorram em sites clandestinos e de difícil acesso. Por isso precisamos de políticas públicas mais efetivas para que tenhamos maior controle das imagens e para que as pessoas tenham ciência que suas imagens estão sendo veiculadas”, acrescenta.
Recentemente, a empresa Meta, responsável pelo Instagram e pelo Facebook, aderiu ao projeto Take It Down, uma iniciativa estadunidense que tem como objetivo facilitar a remoção de fotos íntimas da internet. Outras redes que aderiram à iniciativa são o Yubo e Only Fans, que assinaram um termo se comprometendo a identificar e remover conteúdos inapropriados sempre que houver pessoas menores de 18 anos envolvidas.