A dura realidade dos adolescentes órfãos em abrigos ao atingirem a maioridade
São mais de 40 mil crianças e adolescentes morando em abrigo no Brasil. Destes, cerca de 9,3 mil jovens são maiores de 15 anos e estão próximos de completar a maioridade.
Por Juliane Isler*, no Green Me
Quando um adolescente que vive num abrigo sob o amparo do Estado completa 18 anos, ele é abandonado à própria sorte, muitas vezes sem nenhuma ou real condição de conquistar sua independência.
O argumento principal para esse “abandono”, é que os serviços públicos existem por força do cumprimento da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dão ao Estado a responsabilidade pela manutenção, educação e qualificação profissional dessas crianças e jovens.
Isso significa que enquanto eles estiverem abrigados, as instituições têm que fornecer moradia, alimento, lazer, educação e suporte profissional, para que, ao completarem 18 anos, estejam prontos para enfrentar, sozinhos, todas as necessidades para sua a subsistência sem depender do Estado.
Mas será que adolescentes órfãos ou abandonados pela família, crescidos num abrigo, recebem todo esse aparato estatal e estão verdadeiramente aptos à iniciar uma vida adulta sozinhos?
Infelizmente a resposta é não.
É muito difícil. Se pensarmos num adolescente comum, morando com seus familiares e recebendo todo o suporte necessário, talvez muito provavelmente nem essa pessoa, ao completar a maioridade, estaria pronto para enfrentar os dilemas da vida adulta sem qualquer ajuda, principalmente financeira.
Assim, não é correto nem justo que o Poder Público abandone esse jovem, que ficou sob sua responsabilidade não raro desde a infância, pelo simples fato de ter ele completado 18 anos de idade, especialmente quando não lhe foram dadas reais condições para sua efetiva “emancipação”.
Como funcionam os abrigos
Um “abrigo” é um local mantido pelo órgão público em parceria com entidades ou mantido por entidades privadas e particulares para acolhida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, risco e perigo, ou aqueles que estejam em condições de abandono familiar.
Em sentido estrito, “abrigo” é uma medida de “proteção especial”, “provisória e excepcional” prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para crianças e adolescentes cujos direitos foram ameaçados ou violados pela família, pela sociedade ou pelo Estado.
O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) adotou o termo “acolhimento institucional” para designar os programas de abrigo em entidade.
Em teoria, abrigos deveriam ser locais de mera passagem, locais onde as crianças e adolescentes fiquem por um curto período de tempo, até poderem retornar a residir com familiares, cessem a situação de risco e vulnerabilidade ou serem adotados.
Mas na prática não é isso que acontece.
É comum crianças recém-nascidas passarem o tempo até a maioridade em abrigos.
Há toda uma rede de apoio e amparo aos abrigos e que regem e fiscalizam seu funcionamento, como Judiciário, Ministério Público, os Conselhos Tutelares e de Direitos e o próprio Poder Executivo nos níveis federal, estadual e municipal.
Modalidades de acolhimento
As modalidades de acolhimento institucional previstas pelo PNCFC (Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária) e oferecidas na rede de atendimento municipal são: Casa de Passagem, Abrigo de Pequeno Porte, Casa-Lar e República.
Programas de Acolhimento Institucional ou Família Acolhedora
As famílias acolhedoras não se comprometem a assumir a criança como filho. São, na verdade, parceiras do sistema de atendimento e auxiliam na preparação para o retorno à família biológica ou para a adoção. O período de acolhimento é de seis meses, durante os quais a família recebe uma ajuda de custo de um salário mínimo por mês. Cada família abriga um jovem por vez, exceto quando se tratar de irmãos. Pode ser também um período de transição para esse jovem ir para uma república ou pensionato.
As repúblicas ou pensionatos para adolescentes
É um serviço que oferece apoio e moradia subsidiada a grupos de até 10 jovens, organizados em unidades femininas e unidades masculinas, visando à transição da vida institucional para a vida autônoma e ao fortalecimento dos vínculos comunitários.
Abrigo comum
Serviço que oferece acolhimento, cuidado e espaço de desenvolvimento e sócio educação para grupos de crianças e adolescentes de 0 a 18 anos incompletos sob medida protetiva de abrigo. Deve oferecer atendimento especializado e funcionando como moradia provisória até que seja viabilizado o retorno à família de origem ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para família substituta.
Abrigo especializado
Há situações que requerem atendimento exclusivo de demandas específicas. Nesses casos, a entidade presta atendimento exclusivo, por exemplo, a crianças e adolescentes com necessidades específicas, tais como: em situação de rua; portadores de deficiências mentais e/ou físicas; portadores de doenças infecto-contagiosas, como HIV; adolescentes grávidas ou com filhos, adolescentes sem vínculos familiares etc.
Casa de passagem/Casa transitória
Espaço adequado e profissionais preparados para receber a criança/ou adolescente em qualquer horário do dia ou da noite diante de uma necessidade de acolhimento imediato e emergencial, tais como crianças perdidas, internação hospitalar do único responsável pela criança etc.
Casa-lar
Modalidade de serviço de acolhimento onde uma pessoa ou um casal trabalha como cuidador(a)/educador(a) residente morando numa casa que serve de abrigo a um número máximo de 10 crianças e adolescentes, de 0 a 18 anos incompletos. Esta modalidade é preferencialmente indicada ao atendimento de grupos de irmãos filhos de pais/mães/responsáveis em cumprimento de pena privativa de liberdade; aqueles cujos pais tenham previsão de longos períodos de hospitalização ou sejam portadores de transtorno mental severo, que inviabilize a prestação de cuidados regulares; aqueles para os quais a adoção ou a colocação em família substituta não tenha sido possível; ou aqueles que se encontrem em outras situações que indiquem a necessidade de cuidado fora da residência familiar.
Aldeia
Conjunto de diversas casas-lares que ocupam um mesmo espaço geográfico, como um condomínio de casas-lares.
Quando chega a maioridade: o que diz a lei
Não existe qualquer dispositivo legal que imponha o desligamento automático do jovem assistido quando ele completa 18 anos.
O que a legislação coloca, através do ECA, é que é dever do Estado promover a transição dos adolescentes maiores de 16 anos abrigados, com metodologia participativa, desenvolvendo programas destinados ao fortalecimento da autonomia, dos vínculos comunitários e da qualificação profissional, propiciando assim, preparação gradativa para o desligamento da entidade e o exercício da vida adulta.
É mais do que razoável estender o atendimento a jovens adultos, por determinado período, até que estes obtenham colocação no mercado de trabalho e possam se manter por conta própria.
É bom lembrar que o Estado já falhou diversas vezes com esses jovens antes, e por isso é sua obrigação garantir meios para que ele construa um futuro digno.
Em grande parte, essa condição acaba sendo causada pelo próprio Estado, na lentidão para finalizar a burocracia que libera a criança para a adoção ou na falta de programas sociais efetivos que consigam resgatar a família ou responsáveis dessas crianças abandonadas.
Tanto a Constituição Federal como o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, definem como direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes brasileiros o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Constituição Federal, art. 227, e ECA, art. 19).
Cabe, assim, ao Estado a verificação da situação atual do adolescente da forma mais completa e criteriosa possível para, desde logo haver um efetivo planejamento de ações destinadas a assegurar a continuidade no atendimento que vem sendo prestado mesmo após atingir os 18 anos de idade, devendo ficar claro, desde logo, que não é o caso de, pura e simplesmente, expulsar o assistido da entidade de acolhimento quando ele atingir a maioridade.
Mas infelizmente não é o que acontece.
Tanto assim, que um jovem foi colocado na rua sem qualquer amparo, e teve de recorrer ao Poder Judiciário para restabelecer seus direitos e, através de uma decisão judicial, foi determinada a manutenção do jovem maior de idade a permanecer no abrigo.
O que acontece na prática
A necessidade de recorrer ao Poder Judiciário porque um jovem que atingiu a maioridade foi “expulso” do abrigo, já demonstra que a situação é bem diferente na prática do que diz as leis protetivas.
Atualmente, o adolescente que vive em algum tipo de abrigo e já está se aproximando da maioridade civil, inicia um processo de “transição” para algum outro modelo de serviço cujo o atendimento seja prioritário para essa fase nova.
O adolescente pode ser transferido de uma república, antes dividida com pessoas da sua idade, para a concessão de um “aluguel social” ou um benefício semelhante, até mesmo financeiro, bolsas ou auxílio do governo, até que consiga se estabelecer financeiramente.
Porém, não são todos os municípios ou estados que dispõe de planos de cuidados para esses jovens que atingem a maioridade.
Na prática, há milhares de casos de pessoas que foram colocadas na rua e ficaram totalmente desamparadas, ou são amparadas pela marginalidade e entram para o mundo do crime, ou viram moradores de rua e retornam para utilizar algum serviço público destinado para esse tipo de pessoas, normalmente, casas transitórias, de passagem, somente para atendimento de pernoite e refeição.
Muitas vezes o Estado não consegue suprir as carências de jovens que tem suporte familiar e precisam de emprego, saúde e educação, imaginem aqueles que além disso não possuem sequer moradia ou qualificação?
Projetos em andamento
O senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou no dia 11 de maio deste ano um projeto (PL 2.528/2020) com várias iniciativas para auxiliar esses jovens desamparados.
Uma das principais ações é que os abrigos e instituições de acolhimento adotem a preparação gradativa dos adolescentes órfãos com ensino profissionalizante e educação profissional técnica de nível médio.
Esses lares deverão assegurar aos adolescentes de 14 a 18 anos a preparação e o acesso ao mercado de trabalho, por meio de programas de aprendizagem e cursos técnicos profissionalizantes, através de convênios com o Sistema S, entidades filantrópicas de caráter educacional ou organizações da sociedade civil — e estágios supervisionados.
O texto diz também que esses órfãos egressos terão prioridade no ingresso de programas e serviços públicos de financiamento estudantil e acesso ao primeiro emprego e recebimento de benefícios do Projovem (auxílio pago pelo governo aos jovens que não tenham concluído o ensino fundamental).
Aguardam análise dos parlamentares outras propostas que auxiliam os jovens abrigados, que chegam aos 18 sem terem conseguido uma nova família.
Uma delas é o PLS 507/2018, que cria a Política de Atendimento ao Jovem Desligado de Instituições de Acolhimento, um serviço de apoio para organizar moradias, nos moldes das conhecidas repúblicas de estudantes universitários, destinadas a jovens de 18 a 21 anos que precisaram deixar o serviço de acolhimento de adolescentes e que estejam em situação de vulnerabilidade.
De acordo com o projeto, elaborado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Maus-Tratos, que encerrou seu trabalho em 2018, essas repúblicas deverão acolher, separadamente, os jovens do sexo masculino e feminino acima de 18 anos impossibilitados de retornar à família de origem ou de serem acolhidos por família substituta.
Também vão abrigar aqueles sem condições de prover seu próprio sustento.
Uma luz no fim do túnel, embora sem data para virarem realidade.
JULIANE ISLER – Advogada, especialista em Gestão Ambiental, palestrante e atuante na Defesa dos Direitos da Mulher