A escocesa Donna McLean se apaixonou, em 2002, por Carlo Neri, um homem que conhecera em um protesto em Londres contra a Guerra do Iraque.
Eles tinham muita coisa em comum, em particular, o interesse por causas políticas de esquerda, e estiveram juntos por quatro anos. Para Donna, Carlo era o amor de sua vida, o homem com quem queria se casar e formar uma família.
Mas o relacionamento foi encerrado de forma abrupta por Carlo, que, havia alguns meses, passara a ser comportar de um jeito bastante estranho.
Nove anos depois, Donna descobriu a verdade sobre o ex-noivo: na verdade, usava uma identidade secreta.
‘Minha mãe o amava…era afetuoso e simpático’
Donna estava na casa dos 30 anos, era solteira, vivia em um apartamento em Londres. Tinha trabalhado como enfermeira e agora gerenciava um programa de atendimento psicológico em um abrigo para moradores de rua.
Seu círculo de amigos era basicamente composto de pessoas que conheceu no trabalho e por ativistas ou sindicalistas, que, como ela, simpatizavam com causas de esquerda. Boa parte desse grupo participou, em 2002, da marcha contra a Guerra do Iraque no centro de Londres, que reuniu cerca de 150 mil pessoas.
Foi ali que conheceu um homem que acabaria tendo grande impacto em sua vida.
“Fiquei um pouco perdida porque a marcha era muito grande”, contou Donna ao programa Outlook, da BBC. “Não consegui encontrar as pessoas. Mas lá no Hyde Park achei Dan, um amigo meu. Ele estava com um grupo de pessoas, algumas delas eu já conhecia. E ali Dan me apresentou a esse cara, Carlo. Ele estava um pouco afastado, usando óculos escuros. Achei ele um gato, fiquei bem interessada nele.”
“Na verdade, Dan já tinha me falado dele, de que ele trabalhava como chaveiro. O estranho é que, vendo ele, me lembrei de que já tinha visto ele antes. Ele tinha passado no meu apartamento havia uns 9 meses para pegar umas caixas de papelão. Lembro de Carlo conversando com meu namorado na época. Eu disse: ‘já te conheci antes, no meu apartamento. Mas ele negou, disse ‘Não, não, nunca estive no seu apartamento’. E eu disse: ‘Você ficou falando sobre boxe com meu namorado’. E ele respondeu: ‘Não me lembro disso’.”
Donna contou que o dia terminou com o grupo indo a um pub. Ela sentou ao lado de Carlo e eles ficaram conversando.
“Ele era meio grande, musculoso. E também era ativista de esquerda, falamos sobre política, sobre livros, família. E rapidamente se tornou uma conversa muito íntima. Parecia que havia uma conexão, que eu já conhecia ele. Todos nós fomos jantar, as pessoas foram indo pra casa, e ficamos só nós dois. Então acabamos indo para o meu apartamento. E depois disso, ele foi ficando.”
Poucas semanas depois, Carlo Neri se mudou para o apartamento de Donna. Os dois saíam para trabalhar e voltavam às 5 e meia da tarde. Carlo é quem sempre cozinhava. Eles iam a festas, saíam para jantar, frequentavam o mesmo grupo de amigos.
“Não conseguia acreditar que deu tudo tão certo tão rapidamente. Ele se dava bem com todos os meus amigos. Os amigos do trabalho adoravam ele. E logo ele conheceu minha família.”
“Ele trouxe os livros dele, muitos deles eu tinha, porque eram livros de esquerda. Trouxe muitas fotos antigas de família, fotos de sua mãe quando ela era mais nova. Fotos de seu pai. Algumas fotos de sua irmã. Antes de se mudar ele tinha me contado que tivera um filho, após um relacionamento muito curto, mas que estava afastado dele porque a mãe tinha se mudado para a Cornualha.”
Carlo contou a Donna que tinha nascido em Londres, de pais italianos. Mas que os pais haviam voltado para a Itália quando a mãe ficou doente. Segundo Carlo, a família era de Bolonha. E quando Carlo propôs a Donna que eles comemorassem o Dia dos Namorados em Bolonha, ela topou no ato.
“Foi lindo. Foram as férias mais luxuosas que já tive. Você sabe, eu tinha um emprego relativamente bom e ele também ganhava bem como chaveiro. Ficamos em um hotel cinco estrelas, com café da manhã levado para o quarto. Nunca tinha feito isso antes.”
Mas Donna acabou não conhecendo a família de Carlo.
“Ele já tinha me dito que tinha uma relação ruim com seu pai. Que batia na mãe e era um homem bastante desagradável e que ele, Carlo, sentia muita culpa por não ter conseguido proteger a mãe. Ele disse que aquela viagem era só para a gente se divertir. Foi uma viagem romântica.”
Donna também tinha problemas nas relações familiares, e diz que ambos conversavam muito sobre esses problemas, e que isso foi uma das razões pelas quais se aproximaram tanto tão rapidamente. Outro fator foi que compartilhavam praticamente os mesmos amigos e conhecidos. E que a família de Donna gostou muito de Carlo.
“Minha mãe o amava. Ele era tão afetuoso e simpático. Levava presentes para eles, vinho e comida muito bons. Conversava com meu padrasto sobre motos e história. Jogava sinuca com minha irmã… Era incrivelmente charmoso.”
Já Donna nunca teve contato com parentes de Carlo. Ele disse que tinha uma irmã vivendo em Londres. Ele ia visitá-la, mas nunca levou Donna junto. Dizia que a irmã vivia em um casamento infeliz e sofria de profunda depressão. Carlo também visitava o filho do relacionamento anterior, na Cornualha. E quando Donna sugeria que ele trouxesse o filho para Londres, ele desconversava.
“Ele dizia, você vai conhecê-lo. Isso vai acontecer. Mas no momento, a mãe dele não quer que o menino conheça outra mulher. Preciso recuperar esse relacionamento primeiro.”
Para celebrar o Ano Novo de 2003, Donna e Carlo resolveram dar uma festa. Chamaram amigos, Carlos cuidou da comida e da bebida, estava tudo indo bem.
“Pessoas que não se conheciam estavam conversando, se dando bem. Todo mundo de alto astral, numa celebração adorável. E então… Carlo me pediu em casamento. Só isso: ‘Você quer se casar comigo?’ E eu disse: sim. E ele disse: Vamos ligar para sua mãe. E ligamos, pouco depois do Ano Novo. Minha mãe disse: ‘O quê??’”
“É o que ela queria. Que eu me estabelecesse e tivesse uma vida normal, porque eu tinha ido para Londres. Ela ficava preocupada. Mas ela gostou da ideia de eu encontrar uma pessoa firme e estável que cuidasse de mim, porque Londres pode ser um lugar bastante assustador quando você é uma mulher sozinha.”
“De certa forma, eu sabia que ele ia me pedir em casamento. A gente conversava sobre isso, fazia planos. A gente queria ter três filhos, eventualmente mudar de Londres para uma cidade menor. Era o momento certo. Eu realmente achava que esse seria nosso futuro.”
Algum tempo depois, Carlo mudou de emprego. Ele disse que agora estava trabalhando para uma empresa italiana de importação e exportação. E passou a se ausentar por alguns dias toda semana. Mas eles continuavam a se entender, pelo menos até a chegada do verão.
“Tínhamos planejado férias de duas semanas. A ideia era dirigir até a França e seguir a rota da Tour de France, da qual gostava muito. Ele tinha organizado a viagem, estava tudo pronto. Mas na noite anterior, quando cheguei em casa do trabalho, ele disse: Sinto muito. Não vou poder ir. Preciso voltar para a Itália. Meu pai não está bem, teve um derrame. E foi.”
“A gente se falava todo dia por telefone. Mas parecia que algo estava um pouco diferente. Parecia que havia surgido um distanciamento, algo que não conseguia identificar direito. Ele voltou, e as coisas estavam normais. A gente saía, via as pessoas…Mas comecei a me incomodar com o fato de nunca ter conhecido alguém da família dele.”
O ano passou e Carlo disse que teria de voltar pra Itália porque seu pai tinha piorado. Donna passou o Natal com seus pais na Escócia. No Ano Novo ele ligou dizendo que seu pai havia morrido. E quando voltou, no início de 2004, ele “não era a mesma pessoa que foi para a Itália”, segundo Donna.
“Ele parecia realmente diferente. Ele deixou a barba crescer, estava todo desgrenhado e havia perdido peso. Seus olhos pareciam diferentes. E antes, ele gostava de abraçar, de ficar de mão dada.. Todo esse calor e carinho haviam sumido.”
“E quando conversamos, ele disse que depois do funeral do pai, a irmã dele revelou que fora abusada sexualmente pelo pai desde os 11 anos. Ele disse que não estava conseguindo lidar com o sentimento de vergonha e culpa disso tudo. E de repente eu entendi porque a família dele era tão fragmentada e a irmã tão distante. Eu queria ajudar ou tentar dar o máximo de apoio possível, mas ele realmente se afastou. Mesmo assim eu ainda acreditava no relacionamento.”
Mas num belo dia, Donna voltou do trabalho e todas as coisas de Carlo tinham sumido. Livros, roupas, ímã de geladeira…. Carlo tinha se mudado de casa.
“Fiquei arrasada. E então, duas semanas depois, ele me ligou e disse: ‘Ah, não, não quero que isso acabe. Eu só preciso morar em outro lugar por um tempo. Mas eu realmente não quero que isso acabe’. Voltamos a ficar juntos, mas ele não morava mais comigo. Ficamos juntos por mais seis meses, mas nunca mais foi a mesma coisa.”
“Em um dia de novembro, fomos ao cinema. Ele estava bem desdenhoso e rude comigo. E eu me lembro de ter entrado em um táxi e dele jogando dinheiro em mim. Ele simplesmente não era como a pessoa que eu conhecia. Era como um completo estranho. E no dia seguinte ele me enviou um e-mail no trabalho apenas dizendo: Acabou. Não vou ver você de novo. Estou em outra.”
Essa noite do cinema foi a última vez em que Donna viu Carlo Neri, que ela achava ser o amor de sua vida. Ela ficou arrasada. Com sentimentos que oscilavam entre culpa, tristeza e raiva. Passou a se agarrar ao trabalho. Diz ter levado dois anos para voltar a pensar em namorar de novo.
Ela trocou Londres pela pequena cidade inglesa de Folkestone, na costa, onde iniciou um novo relacionamento e teve gêmeas. E diz que, apesar de estar, hoje, separada do pai das crianças, ter as filhas lhe trouxe propósito, normalidade e estabilidade, coisas que ela tanto queria ter tido na relação com Carlo.
‘Venha a Londres…precisamos conversar’
Os anos foram passando. Em 2015, nove anos após ela ter visto Carlo pela última vez, Donna recebeu uma mensagem de texto de um amigo dos velhos tempos, dizendo “venha para Londres, precisamos conversar”.
Esse amigo tinha reunido um grupo de pessoas para revelar a elas a verdade sobre o homem que todos eles tinham conhecido como Carlo Neri: Carlo era um policial. Ele integrava uma unidade secreta da Polícia Metropolitana de Londres que infiltrava grupos políticos de esquerda e de ativistas na Grã-Bretanha.
“Eles estavam me dizendo que uma coisa tão importante na minha vida não tinha sido real. Lembro de me sentir completamente fora de eixo, como se tivesse feito uma grande trapalhada. Eu simplesmente não sabia qual era a minha parte nisso. Eu não sabia quem eu era na história e por que estava nela.”
O encontro em Londres só confirmou o que Donna já suspeitava. Alguns meses antes, ela recebera a visita de uma amiga que passou uns dias na casa dela. Essa amiga trouxe um livro escrito por dois jornalistas e que estava no centro de um grande escândalo. Ele revelava vários casos de mulheres que tinham tido relações longas com homens que eram, na verdade, policiais disfarçados. Donna leu o livro, Undercover: The True Story of Britain’s Secret Police (Disfarçado: a verdadeira história da polícia secreta britânica, em tradução livre), de Paul Lewis e Rob Evans, em apenas uma noite.
“Os cabelos da nuca se eriçavam enquanto eu lia o livro. O jeito como as relações se desenvolviam… todos os homens tinham o mesmo passado de algum trauma de infância, uma família distante, uma espécie de crise nervosa, e depois desapareciam.”
“Todas essas mulheres ou eram militantes de causas ambientais, de direitos dos animais, ou de partidos de esquerda. Mas o que realmente mais me impressionou foi a forma como esses homens sumiam da vida das mulheres. Eu pensava, meu Deus, isso parece tanto com o que aconteceu com Carlo.”
A verdadeira identidade de Carlo foi confirmada após uma investigação feita por uma rede de ativistas e acompanhada pelo programa Newsnight da BBC e o jornal The Guardian. A BBC não divulgou o nome desse policial para proteger sua família.
A Polícia Metropolitana de Londres, também conhecida como Scotland Yard, tem a política de não confirmar nem negar a identidade de indivíduos que supostamente agiram em condição de agente disfarçado. Mas eles admitiram que policiais infiltrados cometeram abusos e pediram desculpas às sete mulheres mencionadas no livro dos jornalistas – que tinham entrado com uma ação contra a instituição. Elas receberam indenizações após um acordo. A polícia disse que a unidade secreta tinha sido desmantelada em 2008.
Aos poucos, como se estivesse juntando peças de um quebra-cabeças, Donna foi redesenhando sua história com Carlo.
“Fiquei meio obcecada com aquela história dele não se lembrar de ter passado no meu apartamento nove meses antes de nos encontrarmos no Hyde Park. Acho que eu já estava sendo monitorada naquele ponto. Naquela visita, ele ficou sabendo como eu era politicamente porque podia ver meus livros, minha música e minha arte… Hoje eu acho que ele estava mesmo interessado em monitorar outra pessoa. Mas eu era bem sociável. Acho que seria a namorada ideal para ele, porque eu conhecia muitas pessoas ligadas a movimentos de esquerda. As pessoas confiavam em mim. Comigo, ele poderia ir para qualquer lugar e as pessoas confiariam nele.”
“Fiquei com muita vergonha por ter deixado ele me enganar tanto. Fiquei particularmente envergonhada porque ele simulou que teve um colapso mental. Eu passei a vida trabalhando com saúde mental! Me senti uma completa idiota. Até questionei minhas habilidades profissionais. Toda aquela história da irmã abusada pelo pai dele, nada disso era verdade…”
“É muito cruel, muito maldoso contar uma história dessas a uma pessoa próxima, que acaba sofrendo com isso, principalmente se ela também passou por um trauma parecido. Eles simplesmente não se preocuparam com isso, queriam apenas ter uma história, que lhes permitisse sumir, desaparecer quando fosse necessário. A revelação catastrófica que levou a um final foi toda planejada. Não tenho dúvidas sobre isso.”
No início de 2016, Donna McLean entrou com uma ação civil na Justiça contra a Polícia Metropolitana de Londres, dizendo ter sido vítima de abuso e tortura psicológica pela instituição.
Em março de 2022, após seis anos, o processo na Justiça terminou com uma indenização e um pedido de desculpas da polícia. Foi nessa época que Donna lançou um livro, Small Town Girl (Menina do Interior em tradução livre), em que conta sua história.