A leitura de publicações não relacionadas a conteúdos escolares é apontada, pelos educadores, como uma prática “transformadora” na vida das crianças. Para ajudá-las a ter prazer em ler, é preciso saber identificar a obra certa para cada uma
Com aulas, tarefas para fazer em casa e atividades extracurriculares, a rotina intensa dos estudantes pode deixar de fora uma prática apontada por especialistas como uma das mais importantes para o desenvolvimento pessoal e interpessoal deles: a leitura de livros não relacionados a conteúdos escolares.
Da primeira infância até a adolescência, a literatura é um forte aliado de pais ou responsáveis para, além de auxiliar na criação do repertório cultural da criança e aprimorar a capacidade de leitura, fala e escrita dela, ensinar valores éticos, ajudá-la a lidar com dilemas e desenvolver habilidades socioemocionais. É o que aponta Isabella Nogueira, coordenadora dos anos iniciais do ensino fundamental do Colégio Sigma.
“A literatura ajuda as crianças e adolescentes a resolverem muitas questões pessoais, de enfrentamento a dilemas, de medos, até mesmo questões psicológicas. Não é que seja um processo psicoterápico, mas elas conseguem se enxergar nas histórias e entender saídas”, pontua Isabella.
A capacidade de imaginação e inventividade também é propiciada pela prática, o que faz com que a criança saia na frente tanto no aspecto pessoal quanto em um possível profissional.
“A leitura estimula a mente e a parte cognitiva, no sentido do imaginar, criar, fantasiar. Aqui no colégio vemos que as crianças que leem com frequência têm mais repertório e argumentos para qualquer questão apresentada na sala de aula e em conversas regulares”, acrescenta Isabella.
Para obter tais benefícios, no entanto, é preciso ter intimidade com os livros, constância na leitura e prazer no que lê — e para isso se tornar realidade na vida do estudante, o trabalho é de todos que estão à volta dele.
“A leitura depende não do interesse da criança, mas da família. A criança e o adolescente precisam ser estimulados”, pontua Fernanda Simonsen, dona da livraria infantil PanaPaná e produtora de conteúdo para crianças.
E o incentivo começa, de acordo com Fernanda, pelo esforço de entender qual é a obra literária que se encaixa para o filho no momento em que o fomento à leitura for iniciado. O segredo é não se guiar pela faixa etária da criança ou do adolescente, mas, sim, pela fase de desenvolvimento em que ela está.
“Os livros hoje em dia são divididos por fase de desenvolvimento e não por idade, porque é assim que as crianças vivem”, explica. “Não se pode falar que uma obra é para pessoas com 4 anos, porque tem criança com 3 anos que consegue ler, mas algumas de 8 não conseguirão compreender ou não fará sentido para o que vive”.
Dessa forma, a especialista aconselha que a escolha do livro seja feita por três pilares: o nível de proficiência de interpretação e leitura; as demandas informativas de cada fase e a personalidade da criança. Pais que querem, por exemplo, introduzir o filho ainda bebê no universo literário, podem escolher os livros destinados a essa fase, que são compostos de histórias, fábulas, mas também de conteúdos informativos. Basta escolher qual é a necessidade mais urgente.
“Por exemplo, hoje seu filho não come verdura. Há livros do gênero informativo e educacional que incentivam de forma lúdica e por meio de personagens carismáticos a experimentar verduras e a importância delas”, exemplifica a dona da livraria. “E há livros assim em cada fase de proficiência de leitura e interpretação. Basta o tutor identificar a necessidade e o que vai combinar mais com o filho, pelo que ele já conhece da criança”, detalha Fernanda.
De zero a 12 anos
Para bebês recém-nascidos, livros em preto e branco com histórias curtas devem ser usados nas leituras em voz alta feitas pelos pais, pois a demanda é começar a criar o laço com a literatura e o formato de um livro. Mais tarde, entre os 4 e 6 meses da criança, os livros de pelúcia ou cartonados, interativos, podem auxiliar a criança a desenvolver a coordenação motora sem deixar de ouvir uma história.
Dos 2 aos 5 anos, as crianças estão na fase de engajar em histórias curtas, que podem ser contadas em um só momento de leitura. Há coleções de livros com histórias que duram uma noite, por exemplo. “É nessa fase que a criança ouve e quer repetir até ela aprender, e contar para o pai, a avó, o amiguinho. E aí vai se criando o amor pela leitura, porque depois de aprender ela quer descobrir a história de outro livro e por aí vai”, pontua Fernanda.
Mas a livreira alerta: não é porque a história é curta que deve ser uma história sem conteúdo. É importante que os pais escolham livros com temas sensíveis que apresentem às crianças sentimentos diversos e formas de passar por eles.
“Livros para os pequenos não são aqueles só de interação, uma literatura vista como ‘menor’. Existem livros lindos no mercado e que tratam de assuntos sérios, como rejeição, luto, tristeza, e como passar por isso”, diz a especialista.
“As histórias ajudam a gente no desenvolvimento e os pais precisam de ajuda nisso e os livros dão. Você não pode comprar apenas um plástico duro para o seu filho”, acrescenta. A partir da alfabetização, os pais podem optar por livros com histórias um pouco mais longas, continuar a ler o livro para a criança até que ela passe a ler sozinha.
Nessa fase, os pais podem focar em promover o crescimento cultural e humano da criança, com livros que tratem sobre diferenças culturais, raça e diversidade. “Na PanaPaná temos um acervo apenas de obras escritas por indígenas ou sobre os povos originários. É importante, também, a medida que a criança chega no momento de entendimento do mundo, apresentar o mundo como ele é”, conta Fernanda, que também diz ter livros sobre a comunidade LGBTQIA .
Quando a criança se torna um leitor experiente — fase em que consegue ler histórias mais longas e se interessar pelo conteúdo da história e não só pelas imagens — é hora de introduzir livros mais complexos. Para Ana Paula Bernardes, educadora e criadora do projeto Roedores de Livros, o ideal, nessa fase, é tentar evitar que a criança leia apenas os best-sellers do momento, que podem não ser tão ricos em história e narrativas.
“Acho que um erro comum dos pais não conhecedores da literatura disponível é comprar obras da moda, principalmente com filhos adolescentes. Esses não são bons livros, geralmente é o mesmo tipo de história, mesmo tipo de personagem e trama. É importante buscar diversidade porque é a riqueza de conteúdo que os levará a continuar sendo transformados pela leitura”, aconselha.
Além do livro
Com o livro certo, a prática da leitura tem grandes chances de dar certo, mas não é o principal fator para que a criança se torne um leitor. A introdução à prática é o mais importante, porque é pelo estímulo contínuo que a criança pode desenvolver o prazer pela literatura.
Assim, o trabalho dos pais começa quando a criança ainda é um bebê. “De 0 a 7 anos, o pai tem que ler para o filho todo dia. Antes de dormir, ler uma história, fazer um momento para que ela ouça. A criança cresce com o prazer de boas histórias e passa a querer ler”, diz Fernanda.
A partir do desenvolvimento da criança, o momento pode deixar de ser antes de dormir e criar, na rotina do pequeno, um tempo para a leitura. De manhã, tarde ou no início da noite, o importante é estabelecer um espaço com uma espécie de ritual para marcar a prática na memória da criança.
“No projeto, as crianças já sabem que existe um momento da leitura, quando elas vão até a sala, sentam no tapete, com almofadas, e ouve a história. Elas já sabem que aquele momento é de ouvir, de descobrir e de calmaria”, conta Ana Paula, sobre os Roedores de livros.
Ela diz que fez o mesmo com o neto. “Quando ele ia na minha casa, passei a estender um tapete e ele já sabia que era o momento da leitura. Com o tempo, ele mesmo passou a estender o tapete no momento em que ele queria ler e sentar para descobrir o livro”, define.
Outra maneira de incentivar a leitura é levar as crianças para bibliotecas e livrarias que tenham espaço para leitura. “É importante que elas vejam a diversidade de conhecimento, histórias e fábulas que existem. É importante que ela escolha o que quer ler, que ela olhe, analise, seja pelas cores, seja pelos temas”, diz Fernanda.
É recomendável, também, comprar um livro de cada vez — do que em blocos — para a criança degustar sem pressa e, mesmo assim, depois de poucos meses, ela tem um pequeno acervo só dela.
A escola também pode — e é aconselhável que os pais procurem a característica na hora de escolher a instituição — ser um auxílio aos pais para fomentar o incentivo à leitura. O Colégio Sigma é um exemplo: além de disponibilizar uma biblioteca ou um acervo para que os alunos peguem emprestado um livro e leiam em casa, a instituição de ensino criou um projeto de leitura compartilhada em sala de aula.
“Os alunos leem, juntos, o mesmo livro, com o professor. São livros, geralmente, de uma dificuldade um pouco maior para que eles sejam estimulados a perguntar ao professor o que tiver dúvida, como vocabulário ou entendimento do contexto. Todos leem juntos na sala”, explica Isabella, coordenadora dos anos iniciais do ensino fundamental do Sigma.
“Nosso 5º ano lê, por exemplo, Megera Domada, de Walcyr Carrasco, na versão teatral, na qual o aluno consegue se envolver mais e a leitura ser marcante”, acrescenta Isabella, coordenadora do ensino fundamental da instituição.
Por fim, é importante que os pais tenham sempre um livro à mão. “A gente fala muito de literatura como afeto. Mostrar uma relação com a literatura faz com que a gente não apresente ela como obrigação, mas como uma coisa prazerosa, o que atrai a criança”, completa Ana Paula.
Uma pequena grande leitora
Com apenas dois anos a mais do que a idadeinicial em que se aprende a ler e escrever, Catarina Moraes e Araújo, de 8 anos, já desfila pela casa com um livro da saga Harry Potter embaixo do braço. Estimulada pela mãe, Mônica Cristina Moraes Araújo, à prática da leitura desde os primeiros anos de vida, a estudante do 4º ano do Leonardo da Vinci já se sente pronta para mergulhar no universo de ficção do bruxinho mais famoso das últimas duas décadas — os livros da saga são conhecidos por serem ricos de detalhes narrativos e também de numerosas páginas.
Foi da irmã dela, de 12 anos, que também é leitora assídua, que veio o incentivo de começar a ler a coleção. “Eu estou gostando muito. Eu já vi o filme, mas não vi todos, porque eu queria logo ler os livros. Eu falei pra mim ‘Catarina, você vai ler os primeiros três livros para que os filmes não deem spoiler do que tá no livro e fazer perder a graça’”, conta a menina, que gosta tanto de ler que para ela é pior pegar spoiler do livro do que do filme.
Mônica diz que Catarina está em fase de evolução, na qual deixou de ler, há pouco tempo, com a mãe e passou a ler sozinha. Os primeiros livros dela foram quando ainda era bebê. “Procurava encontrar um tempo, apesar da minha rotina, de ler para ela. Desde pequenininha, escolhia livros para cada idade. Quando elas começaram a alfabetização, passei a ler mais pausadamente para elas compreenderem as sílabas, as letras. Quando eu via que o livro estava muito fácil para ela, eu sempre comprava um mais denso. Hoje, ela já está com coisas grandes”, conta a mãe.
Além do incentivo em casa, Mônica diz que a escola também mantém o interesse da filha ao promover momentos de leitura nos quais as crianças são levadas até a biblioteca do centro de ensino. “No início, a professora leva as crianças, quando são menorzinhas, agora na idade da Catarina, ela vai sozinha sempre que quer”, conta.
No início de janeiro, Mônica e Catarina estavam de férias e decidiram separar alguns livros para doação. O momento foi interrompido por uma fala empolgada de Catarina ao reencontrar um livro de histórias de conto de fadas. “Ela pegou o livro e disse: ‘Olha mãe, esse foi o primeiro livro que eu peguei’. E disse: ‘Vou ler sozinha e vou ler até o fim’. Ela estava orgulhosa de si e nós guardamos de recordação”, diz Mônica.
Catarina afirma que a obra que conta sobre o mundo dos contos de fadas é o livro que ela mais gostou até aqui. “Antes, eu lia só as imagens e a história, que era curta. Um dia eu brincava de escolinha perto da estante e escolhi esse livro para ler para a minha ‘turma’. Li um pedaço e vi que era muito legal e decidi ler até terminar”, lembra Catarina.
A menina diz que lembra quando a mãe lia histórias, contos e até a Bíblia para ela. “Eu gostava muito porque eu sentia que estava dentro de um conto de fadas”, define Catarina.
Pelos livros, a estudante diz que aprendeu palavras novas, ler melhor em voz alta e também outros valores. “Em um livro aprendi que não posso tocar em animais selvagens, porque eles são bons, mas podem fazer algo com você. Em outro aprendi que você pode fazer o que quer e no seu tempo”, compartilha.
Literatura
“A literatura ajuda as crianças e adolescentes a resolverem muitas questões pessoais, de enfrentamento a dilemas, de medos, até mesmo questões psicológicas. Não é que seja um processo psicoterápico, mas elas conseguem se enxergar nas histórias e entender saídas”
Isabella Nogueira, coordenadora dos anos iniciais do ensino fundamental do Sigma
Dicas de livros para cada fase de desenvolvimento
Baby ouvinte (0 a 3)
Branca de Neve – Clássicos Animados Conto Universal ( Baby Interativo), Ed V&R
Com ilustrações animadas, a criança irá, com ajuda do pai, interagir com os personagens e os elementos gráficos que compõem a história.
Do outro lado (cartonado), Ivanke e May, Ed Catapulta
Com muitas ilustrações, o livro ensina como lidar com o medo. Por meio da leitura dos pais, que também contarão o conteúdo da imagem, a criança entenderá o que é o medo e como enfrentá-lo.
Leitor iniciante (3-6 anos)
Menina Amarrotada, Aline Abreu, Ed Jujuba
A separação de uma menina do pai, que viajou para longe, fez a menina começar a amarrotar, por dentro, por fora, o aperto era sem fim. O livro conta como lidar com o sentimento da separação e do luto.
ABCdinos, Celina Bodenmüller e Luis Anelli, Ed Peiropolis
Cada letra do alfabeto corresponde a um dinossauro que habitou no planeta. A descrição deles é em forma de poema, além de mapas que mostram em qual lugar o animal passeava. Ideal para alfabetizandos.
Leitor experiente (6 anos )
Diário de Pilar na Índia, Flávia Lins e Silva, Ed Pequena Zahar
Livro que leva a criança para uma imersão na cultura indiana: desde a culinária até os aspectos espirituais e filosóficos do país. Bom para pais que querem introduzir visã de coletividade à criança
Capitão Mimo, Alexandre Boide, Ed V&R
O livro conta a história do cachorro Mimo e seu dono, o garoto Nico, que tem que aprender a passar pelas dificuldades do crescimento, como amizades, perdão, companheirismo e coragem.
Extra: Cultura brasileira – povos originários
As serpentes que roubaram a noite e outros mitos, Daniel Munduruku, Ed Povo Munduruku
O livro conta os mitos contados pelos anciões da aldeia Katô, mostram a cultura do povo e a visão de mundo deles. A obra ainda conta com ilustrações das crianças da aldeia.
O cão e o Curumin, Cristino Wapichana, Ed Melhoramentos
A história de amizade entre um curumim e seu cachorro resgata as tradições do seu povo e mostra o dia a dia de uma criança indígena.
Via: Correio Braziliense (Fonte: Fernanda Simonsen/ Livraria PanaPaná)