Como nem tudo na vida se divide entre mocinhos e bandidos, assisto — com uma mistura de humor e indignação — às trocas de farpas e disparos sem fim de balas perdidas, a discussões que giram, acirradas, entre os exacerbados contendores de um fla-flu. Xingam-se, destilam ódio, parecem heroicos e ferozes defensores de uma causa inglória.
Para quê? Para não chegar a lugar algum. Excluídos os falsos “especialistas”, curiosos e loquazes achólogos, vamos aos lúcidos. É mais proveitoso e interessante.
A história tem começo, meio e fim. O início é com José Guilherme Godinho, mais conhecido como “Sivuca”, policial do Rio de Janeiro ligadíssimo à Scuderie Detetive Le Cocq, entidade formada nas entranhas policiais para matar bandidos. Aposentado, o policial embrenhou-se na política, sagrando-se vitorioso com o lema “bandido bom é bandido morto”.
No meio, estão determinadas circunstâncias de momento. O banditismo (olhe à volta) é ainda mais letal do que as forças do Estado. O fim está no abismo das ideias limitadas, pois a frase escancara uma insofismável e contraditória contaminação pela linguagem. Agressão ao vernáculo: o significado da frase, considerando-se que “bandido” e “bom” não combinam, jamais poderiam. O idioma não permite, as referências são inapelavelmente contraditórias. Não há escapatória: ou se é bandido, ou então bom. Ambos, impossível.
Vejamos. Bandido, rigorosamente falando, é um malfeitor, um facínora, um gângster, um criminoso, um assaltante, um delinquente. Alguém que comete crimes de maneira cruel e perversa. Faz sofrer. Este é o bandido. Sempre age em benefício próprio, jamais de terceiros, principalmente apoderar-se à força, ou com violência, do bem alheio.
Bom, exatamente ao contrário, é alguém caracterizado pela confiabilidade, fraternidade, honestidade, sempre perseverante.
Não se confunda com bonzinho: este, na verdade, é o que se omite em tudo, incapaz de balançar a cabeça negativamente quando tantas vezes é necessário.
Bandido, água. Bom, azeite. Não são misturáveis, como já dizia Lúcio Flávio, um perigoso bandido do passado, ao fazer a distinção entre polícia e bandido. Uma lição histórica de quem aliou-se, como ladrão de bancos, ao antigo policial Mariel Maryscott, fuzilado exatamente porque fez a mistura perigosamente impossível. A mesma mistura que levou Lúcio à morte, às vésperas de ser libertado de um presídio do Rio de Janeiro. O fim de uma era: Mariel chegou a integrar um grupo matador, autodenominado “homens de ouro”, que segundo o general França, secretário de Segurança, seriam os “empreiteiros de Jesus”, conforme definia o jornalista David Nasser, da antiga revista O Cruzeiro.
Feitos os esclarecimentos de praxe, vamos aos fatos contemporâneos. Há bandidos demais. Assaltam, invadem residências, estupram, matam. São impiedosos, implacáveis, ferozes, sentem prazer ao perceber o pânico das vítimas estampado nos olhos. Valorizá-los, como há quem faça, é indulgência narcisista.
Um bandido, como se tem visto, é capaz de dar um tiro na cabeça de quem está andando na rua com um celular. Tenta justificar dizendo que a vítima “reagiu”. Quer dizer: além de tudo, a vítima tem que ser dócil como uma ovelha a caminho do matadouro. O celular é uma das principais motivações para o roubo, e por isso o novo delegado-geral de Polícia de São Paulo, Osvaldo Nico Gonçalves, assumiu o cargo com esse propósito: proporcionar ao paulistano um mínimo de sensação de segurança. Diminuir a síndrome do medo. Alguém contra? Aliás, Nico tem o hábito de referir-se a bandido de outra maneira: ele costuma classificá-los de “vagabundos” que devem ser caçados, capturados e aprisionados.
Contra Nico e sua guerra aos cultores do ócio, ninguém reclamou. Mas contra a polícia enfrentar bandido, no mínimo de igual para igual, erguem-se sonoras vozes, compondo um gigantesco e desafinado coral com a silhueta de uma indecifrável bandidolatria. Sim, tem gente que aprecia bandido e odeia a polícia, menos quando precisa dela. Quando se precisa, ninguém quer ligar para o PCC e sim para o 190, que aliás recebe, em média, 45 mil chamadas diárias na Grande São Paulo. Um sintoma sociológico, ainda a ser explicado. Mas não pelos “especialistas” de boteco, tão irritantes quanto inúteis.
A próxima vítima pode ser você, não se esqueça disso na cidade grande. Observe bem isso na hora de atacar ou defender. Ninguém anda tranquilo pelas ruas, nem eu, nem você, como se sempre houvesse alguém à espreita para atacá-lo, andando pelas ruas ou dirigindo seu carro. Ou cercando de cuidados o filhote quando sai de casa, monitorando-o e só ficando sossegado quando ele volta para casa — isso quando não preferir ir buscá-lo num lugar previamente combinado. Medo de quem? Do bandido.
Não é assim? Sabemos muito bem que é.
Existe ainda o comportamento bandido entre eles próprios. Nos presídios, trucidam-se entre bandos rivais que se encontraram no cárcere e, lá dentro, promovem um ajuste de contas por causa de desavenças aqui fora.
Nas ruas, não é diferente. Máfias contra máfias se digladiam. São ferozes, matam e mutilam como se estivessem fazendo execuções ao mesmo tempo sumárias e exemplares. Vazam olhos. Decepam cabeças. Esquartejam. Jogam pedaços de corpos como se estivessem se livrando de lixo. Não há alma, não há um mínimo de sentimentos. Quanto mais brutal, acham que melhor. Adoram certos tipos de apelido, como “Sem Cérebro”, “Capeta”, “Sangue Ruim”, “Animal”, e tatuagens diferentes que os identificam como assassinos, pistoleiros e categorias específicas de assaltantes. Montam cativeiros, aterrorizam os familiares das vítimas exigindo resgate, esmeram-se nas torturas físicas e psicológicas. Usar Pix virou ameaça.
Bandido é assim. Ser bom não lhes passa pela cabeça, nem por fugaz lampejo de consciência. Como sei de tudo isso? Vivendo o dia a dia do mundo criminal. A passarela bandida por onde desfilam todos os tipos imagináveis de criminosos. Alguns, de fato, possuem potencial ofensivo menor. Outros, você olha bem para tentar descobrir como foram capazes de fazer os absurdos que fizeram.
Como você já percebeu, é óbvio que não dá para gostar de bandido. Gostaria muito que mudassem de vida, na pretensão de regeneração. Uma utopia prisional, como diria Michel Foucault, o mestre francês nessa matéria. Portanto, não existe bandido bom, mas existem vítimas boas, cujas vidas foram ceifadas tendo à frente uma história de vida para ser escrita. Para parentes e amigos, uma ferida que sangra na alma e jamais será cicatrizada.
Teria muitas histórias para contar. Vou me limitar a uma.
Um delegado de polícia, meu amigo, me avisou quando capturou um bandido que, dias antes, invadira uma residência e estuprara uma mulher e sua filha adolescente, à vista do marido amarrado.
Olhei o bandido. Ele me mediu, dos pés à cabeça, demonstrando indiferença. O delegado mandou retirá-lo da sala. Entrou depois o homem que foi obrigado a ver a esposa sendo estuprada e a filha também.
Eu vi, na sequência, esse homem, arrasado, ajoelhar-se aos prantos diante do delegado. Com as mãos, fez um sinal de súplica, como se estivesse rezando, e implorou, gaguejando, que o delegado lhe permitisse, por “apenas cinco minutos”, deixá-lo sozinho com o bandido estuprador. O delegado disse que não poderia fazer isso. O homem, cabisbaixo e soluçando, deixou a sala. Foram alguns dos piores momentos da minha vida.
Depois disso, acompanhei mais duas histórias. Uma de vítima de assalto. Na prisão, o ladrão não recebia a visita de ninguém. A não ser a da vítima do assalto. Intrigante.
Outra, de uma senhora que teve o filho assassinado. Ela era uma das poucas visitas para o jovem que havia tirado a vida de seu filho. Perdoar é esquecer? Continuo à busca da difícil resposta.
Por Percival de Souza*, no Arquivo Vivo/R7
Percival de Souza*
É um dos mais reconhecidos jornalistas investigativos da imprensa brasileira. Com mais de 50 anos de carreira, Percival ganhou quatro prêmios Esso de jornalismo, o principal do País, e um Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Estreou na profissão na Folha de S. Paulo, passou por Quatro Rodas, foi um dos fundadores do Jornal da Tarde e também teve passagem pelo Notícias Populares. É autor de 18 livros, entre eles “Autópsia do Medo”, “Narcoditadura”, “Eu, Cabo Anselmo”. Desde 2003, atua como comentarista de segurança da Record TV.