O rosto da irmã na maca do IML (Instituto Médico Legal) ainda está na memória do empresário Douglas Lopes Relva, 36, mesmo mais de quatros anos depois de ela ter morrido após ser atropelada na madrugada de 30 de setembro de 2017 na marginal Tietê, em São Paulo.
Vanessa Relva, na época com 27 anos, e outros dois amigos, Aline Sousa, 28, e o fisioterapeuta Raul Fernando Nantes, 49, que também morreram, estavam por volta das 5h em um recuo da marginal, provavelmente para a troca de um pneu furado, quando foram atingidos pelo carro da vendedora Talita Sayuri Tamashiro, na época com 32 anos.
A motorista afirmou aos policiais que registraram a ocorrência e a um socorrista do Samu que havia bebido em uma balada na zona oeste e que usava o celular no momento do acidente.
Na delegacia, Talita, que chegou a ser presa, negou que manipulava o celular, que era apenas usado como GPS, segundo ela.
Mortes provocadas por uso de celulares são uma realidade no trânsito brasileiro. Levantamento feito pela Polícia Rodoviária Federal mostra que no ano passado dez pessoas morreram em rodovias federais em acidentes que tiveram como causa principal a utilização destes aparelhos pelos condutores. Outras 117 pessoas ficaram feridas, 23 em estado grave.
Ao todo, foram 125 casos – ou seja, um acidente a cada três dias causado pelo uso do celular. Neste ano, até 15 de maio, em 38 ocorrências, quatro pessoas morreram e 41 ficaram feridas (quatro com gravidade), igualmente em rodovias federais.
A Polícia Militar de São Paulo não possui estatísticas do tipo em rodovias estaduais. A Secretaria Nacional de Trânsito também diz não disponibilizar dados sobre acidentes provocados pelo uso de celular em geral.
Um relatório sobre trânsito e celular elaborado pela Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) em abril do ano passado aponta que a investigação de 34.439 acidentes de trânsito com mortes nos EUA concluiu que 444 deles envolveram falhas de atenção devido ao uso de celulares.
Na semana passada, a entidade médica publicou um estudo mostrando que, em 2021, mais de 246 mil motoristas foram multados por usar celular enquanto dirigiam no Brasil – média de 28 condutores autuados por hora.
A legislação nacional diz que dirigir veículo utilizando-se de fones nos ouvidos conectados a aparelhagem sonora ou de telefone celular é infração média, com cinco pontos na carteira de habilitação e multa de R$ 130,16.
Agora, se o motorista manusear o aparelho, para mandar mensagem ou visualizar um vídeo, por exemplo, ele comete infração gravíssima, com sete pontos na CNH e multa de R$ 293,47.
“Qual mensagem, áudio ou vídeo é tão importante que precisa ser visto naquele momento, que a pessoa não pode encostar o carro para ver, ouvir ou ler? É mais importante que a vida?”, questiona Relva.
Conforme o processo judicial, a motorista do atropelamento na marginal Tietê afirmou ao socorrista do Samu que não tinha visto nada do acidente porque estava ao celular no momento do atropelamento. O relatório da associação médica do ano passado mostra que digitar uma mensagem de texto enquanto se conduz um veículo a 80 km/h equivale a dirigir com os olhos vendados por um percurso de até 100 metros.
O texto da Abramet, chamado de “Riscos do uso de telefone celular na condução de veículos automotores”, afirma que a utilização do aparelho e de dispositivos de mensagens se destaca como principal causa na falha de atenção de motoristas.
São esses segundos que mudam a vida de uma família. Segundo Relva, seu pai, também Douglas, 72, entrou em um processo de reclusão desde que atendeu ao telefonema informando a morte da filha Vanessa. “Ele não fez mais suas caminhadas ou frequentou o clube onde praticava esportes”, diz. “Datas como aniversário ou Natal nunca mais foram as mesmas.”
A morte da empresária mudou a rotina do irmão também. Eles eram sócios na gestão de 16 pontos de valetes na Mooca, zona leste de São Paulo. “Acabei fechando todos porque tudo me lembrava ela”, afirma Relva, atualmente dono de uma empresa de reciclagem.
A motorista, que também estava com a careira de habilitação suspensa, foi condenada a 2 anos e dois meses de prisão em regime aberto, pena revertida em prestação de serviços comunitários e que ainda não começou a ser cumprida. Não cabem mais recursos. Procurado para falar do resultado final do processo, o advogado que defendeu a vendedora na época disse que a defesa não iria se manifestar.
Um estudo realizado pela Abramet e pelo Instituto de Medicina do Hospital das Clínicas, com voluntários no autódromo de Interlagos, apontou que com o celular na mão, motoristas realizaram guinadas bruscas no volante e curvas exageradas na execução de manobras simples para percorrer uma fileira de cones, entre outros.
“As diretrizes que publicamos mostram que 70% dos motoristas acreditam que a direção e o celular não combinam, mas somente cerca de 20% deles dizem se privar dessa perigosa combinação”, afirma Antonio Meira Júnior, presidente da Abramet.
O médico lembra que sistemas de viva voz, microfone e auto-falantes nos veículos permitem ao motorista manter as duas mãos ao volante quando atendem a uma ligação telefônica, mas não diminuem totalmente a distração. Segundo ele, o conteúdo da conversa pode provocar uma alteração emocional, com risco de se transformar em uma tragédia.
Meira Júnior afirma que as estatísticas disponíveis podem estar subestimadas, pois é muito difícil um motorista assumir que usava um celular no momento de um sinistro de trânsito.
Opinião semelhante tem o advogado Israel Correia, coordenador da Comissão de Direito do Trânsito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo. “Estão informatizando o sistema e daqui a alguns anos vai ser mais fácil provar com drones ou filmagens”, afirma.
Ele diz ainda que a Justiça não costuma permitir que as autoridades vasculhem o celular de alguém atrás de provas do uso do aparelho – por exemplo, se houve troca de mensagens no momento do acidente.
Para a promotora de Justiça Celeste dos Santos, que trabalhou no caso do atropelamento na marginal, a sensação de impunidade ajuda a encorajar motoristas a usarem o celular enquanto dirigem.
“A resposta do Estado a estas condutas também é amena e muitas vezes, tardia”, diz, referindo-se ao fato de a motorista ainda não ter começado a cumprir pena por um crime cometido em 2017, mesmo com o processo judicial já finalizado.
A promotora, uma das autoras do projeto de lei do Estatuto da Vítima, à espera de ser colocado na pauta de votação na Câmara dos Deputados, diz que é preciso uma mudança de comportamento, além de campanhas educativas para convencer os motoristas a não usarem o aparelho enquanto dirigem.
Da FOLHAPRESS