Natália Pasternak diz que, mesmo se a ômicron for mais leve, a ideia de se infectar para ficar imune está baseada em falsas premissas e traz riscos à saúde
As informações preliminares de que a variante ômicron causaria uma covid mais leve e com menor risco de complicações serviram para dar forças a argumentos do tipo: “melhor se infectar logo, ou de propósito, para se livrar da doença e seguir a vida com menos restrições”.
Na visão da microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, a ideia é “péssima”, está baseada em “falsas premissas” e pode colocar em risco a saúde individual e coletiva.
A especialista não está sozinha nessa avaliação. Nenhuma entidade de saúde nacional ou internacional recomenda essa prática — a vacinação continua sendo a forma mais segura e efetiva de obter uma imunidade contra o coronavírus, especialmente contra as formas mais graves da infecção, que levam à hospitalização e morte.
O médico Drauzio Varella também abordou o assunto e fez um alerta parecido numa coluna da revista Carta Capital intitulada “Fuja da ômicron”.
“Alguns se perguntam se não seria melhor pegarmos de uma vez essa variante menos agressiva. Não é melhor, não”, escreveu.
Já no Twitter, o cofundador da Microsoft Bill Gates e a especialista em saúde pública Devi Sridhar, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, promoveram um debate e alertaram para o desafio que a onda de ômicron pode significar para vários países — mais um fator que pesa contra uma tentativa de “infecção proposital”.
“Enquanto os países atravessam a atual onda de ômicron, os sistemas de saúde serão desafiados. A maioria dos casos severos serão em pessoas não vacinadas”, escreveu Gates.
Ambos concordaram que, quando a onda da ômicron terminar, pode até ser que a covid-19 fique mais parecida com a gripe sazonal, mas ainda não chegamos nesse estágio.
Confira a seguir os argumentos contrários à ideia de pegar a ômicron por vontade própria.
1. Essa não é uma ideia nova — e não funcionou no passado
Pasternak lembra que, há algumas décadas, quando não existiam vacinas, os pais costumavam promover as chamadas “festas” do sarampo, da catapora ou da rubéola.
Em resumo, a ideia era que uma criança infectada transmitisse o vírus para as demais. Como essas doenças costumam ser mais leves na infância, a prática poderia criar, em tese, uma imunidade e evitar problemas maiores na adolescência ou na vida adulta.
“Essas festas eram extremamente arriscadas, porque não dá pra saber qual criança que pegar sarampo e vau ter um quadro mais leve ou morrer”, explica.
“Mortes por sarampo nos primeiros anos de vida são raras, mas também acontecem”, aponta.
E esse mesmo raciocínio pode se aplicar à covid, como você confere no próximo tópico.
2. A covid não é sempre mais branda
A microbiologista entende que os indícios de que a ômicron causa uma infecção mais leve ainda são muito iniciais.
“Esses estudos foram feitos em animais e não podemos transpor essas informações para seres humanos”, diz.
“O que vemos na prática até agora é que, numa população de pessoas vacinadas, a ômicron causa uma doença menos grave. Já em não vacinados, a variante está internando e matando”, diferencia.
Ou seja, mesmo que passemos a observar menos hospitalizações, pelo avanço da vacinação e pelo espalhamento da ômicron, a covid ainda está bem longe de ser comparada a um resfriado simples.
3. Mesmo quadros amenos podem causar transtornos
Pra começar, mesmo a infecção aguda leve, que se arrasta por dias, tem consequências imediatas na vida das pessoas, como o afastamento do trabalho pelo período de recuperação.
Mas há efeitos de médio e longo prazo que também precisam ser colocados na balança.
Pasternak usa a própria experiência para mostrar como os efeitos dessa doença são complicados.
“Eu peguei covid há um mês, muito provavelmente foi pela variante ômicron. E até hoje não recuperei meu olfato”, relata.
“É óbvio que ficar sem sentir cheiros é bem melhor do que ser internada e intubada, mas eu preferiria que isso não tivesse acontecido”, complementa.
A microbiologista lembra que muitos pacientes apresentam queixas por tempo prolongado após a infecção.
“Tem gente que fica com dor nas articulações ou na cabeça por meses. São sequelas desagradáveis, mesmo que não causem hospitalização”, conta.
4. Ninguém sabe o que vai acontecer com o passar dos anos
Os efeitos de longo prazo da covid-19, aliás, ainda são um grande mistério para a ciência.
Os trabalhos publicados até agora calculam que entre 10 e 30% dos acometidos pela doença sentem incômodos que perduram por vários meses.
E ninguém sabe como isso pode repercutir na saúde daqui há anos, ou décadas.
Para ilustrar essa incerteza e os riscos para o futuro, Pasternak cita outra enfermidade causada por um vírus: a catapora.
“Ela sempre foi vista como uma doença benigna. Afinal, todo mundo tinha catapora”, se recorda.
“Hoje sabemos que esse vírus fica no corpo mesmo após a infecção e pode ser ativado depois de vários anos. Quando isso acontece, a pessoa tem herpes-zóster, um quadro que causa muita dor e sofrimento”, descreve.
Será que o coronavírus responsável pela pandemia atual pode ter algum efeito de longo prazo? Não se sabe.
Na dúvida, portanto, melhor não se expor ao risco de forma proposital, orienta a microbiologista.
5. Você pode transmitir para pessoas vulneráveis
A covid chega a demorar dias para dar os primeiros sintomas — e alguns infectados sequer sentem algum incômodo.
Mesmo assim, esses indivíduos têm a capacidade de transmitir o vírus adiante se não tomarem alguns cuidados, como fazer isolamento, manter distanciamento físico e usar máscaras de qualidade, como a PFF2.
Ou seja: se você está vacinado, é mais jovem e não tem nenhuma comorbidade, o risco de complicações da covid é até mais baixo, mas nada impede de você passar a doença para alguém que vai desenvolver problemas mais sérios.
“Existe uma parcela da população que é mais vulnerável, como os idosos e as pessoas não vacinadas”, exemplifica Pasternak.
A especialista também destaca o cuidado com as crianças, uma das faixas etárias que, segundo alguns registros internacionais, estão sendo internadas com mais frequência agora nessa nova onda.
A vacinação para quem tem entre 5 a 11 anos começou em janeiro no Brasil. Para aqueles que são ainda mais jovens, não existem imunizantes aprovados no país por enquanto.
“São grupos que não têm a mesma proteção e que podem desenvolver quadros sérios”, informa.
6. Você pode sobrecarregar o sistema de saúde
O avanço da variante ômicron está por trás de recordes de novos casos de covid-19 registrados nesses últimos tempos.
Para ter ideia, na segunda semana de janeiro, o mundo superou a marca de 18 milhões de infectados — o número mais alto registrado anteriormente havia sido o de 5 milhões de pacientes, num período de sete dias no mês de abril de 2021.
No Brasil, após um segundo semestre de 2021 marcado por quedas nas estatísticas da covid, os números de casos voltaram a crescer e já se aproximam aos dos piores momentos da pandemia.
Na prática, isso representa um desafio enorme: mais gente com covid é sinônimo de aumento na demanda para todo o sistema de saúde.
“Ao pegar covid de propósito, você pode contribuir para sobrecarregar ainda mais esse sistema”, adverte Pasternak.
“Mesmo uma doença mais leve significa aumento na procura por testagem, pronto-socorros, ambulatórios, leitos de atendimento e necessidade de profissionais de saúde”, lista.
7. Não há certeza de imunidade duradoura
Por fim, a microbiologista alerta: não existe nada que garanta que a imunidade contra a covid dure por toda a vida.
Inclusive, o próprio espalhamento da ômicron mostra que é possível ter a doença mais de uma vez: a taxa de reinfecção em locais como África do Sul e Reino Unido nunca foi tão alta como agora.
“Quem é que disse que, ao pegar covid de propósito, você vai se livrar dela para sempre? A gente não tem como garantir isso”, explica.
“Pode ser que você pegue a ômicron agora e se infecte com outra variante que consegue escapar da imunidade prévia no futuro”, completa a microbiologista.
Por isso, é importante que todo mundo continue se cuidado e evite ao máximo a covid-19.
De acordo com as principais autoridades em saúde do mundo, as melhores maneiras de prevenir a doença e suas formas mais graves são tomar as duas ou as três doses de vacina, usar máscaras de boa qualidade (como a PFF2), manter um distanciamento físico de pessoas que não fazem parte do seu convívio diário, evitar aglomerações, procurar marcar encontros e reuniões em locais abertos e cuidar da circulação de ar nos lugares fechados.