As plantas brasileiras quase extintas que movem mercado milionário no Instagram
O crescente interesse pelo cultivo de plantas ornamentais dentro de casa produziu uma situação paradoxal: hoje é mais fácil encontrar algumas espécies brasileiras no Instagram do que em seus ambientes naturais.
Plantas que foram quase extintas de seus habitats por causa da extração predatória e do contrabando abundam em posts de colecionadores e vendedores, que as oferecem por valores que chegam à casa dos R$ 150 mil.
Nenhuma espécie expõe melhor o fenômeno do que uma trepadeira nativa de uma pequena região serrana do Espírito Santo batizada com o nome do Estado, a Philodendron spiritus sancti.
Quando a espécie é pesquisada no Instagram, surgem mais de 4 mil resultados – a ampla maioria de colecionadores que as exibem nos chamados “urban jungles”, os jardins cultivados dentro de casa que se tornaram uma febre global durante a pandemia.
Mas, na última vez em que pesquisadores a procuraram em seu ambiente original, em 2000, não acharam nada – nem mesmo nos locais onde ela havia sido vista em 1974 e 1986.
Lista Vermelha
A Philodendron spiritus sancti está na na Lista Vermelha do Centro Nacional de Conservação da Flora, principal instituição brasileira a monitorar as espécies de plantas ameaçadas. Pertence à categoria “em perigo”, que se aplica às espécies sob “risco muito elevado de extinção na natureza”.
Essa é a penúltima categoria no grau de ameaça, só abaixo das espécies “criticamente em perigo”.
A trepadeira capixaba é uma das espécies mais visadas por contrabandistas. Em abril, a Polícia Federal prendeu um homem que tentava embarcar no aeroporto de Rio Branco com 28 mudas da espécie.
Segundo a polícia, ele pretendia levar as plantas para a Bolívia, de onde seriam vendidas para outros países.
No Brasil é proibido coletar ou comercializar plantas que estejam na lista das espécies ameaçadas. Mesmo assim, a BBC localizou no Mercado Livre anúncios de algumas orquídeas e cactáceas presentes na lista (leia mais abaixo).
Possuir essas espécies em coleções privadas ou ganhá-las de presente, por outro lado, não é ilegal.
As plantas ‘unicórnios’
A Philodendron spiritus sancti só vive no topo de árvores altas e tem folhas estreitas e compridas, que formam “orelhas” no ponto de contato com as hastes.
É elegante, mas bem menos vistosa que várias de suas parentes da família Araceae, que abarca espécies comuns em casas e jardins, como a costela-de-adão (Monstera deliciosa) e a comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia seguine).
Este fator, aliás, talvez ajude a explicar por que a Philodendron spiritus sancti se tornou tão cobiçada. Num mundo em que postar uma costela-de-adão no Instagram virou um clichê, destaca-se mais quem for capaz de exibir plantas raras, conhecidas no meio como “unicórnios”.
‘A mais rara e desejada do mundo’
“Não vou ser hipócrita de dizer que não gosto de planta rara: eu gosto e quero na minha coleção aquelas que despertam mais desejo”, diz à BBC News Brasil um dos donos de exemplares da Philodendron spiritus sancti no país, o colecionador Samuel Gonçalves.
Gonçalves é responsável pelo canal do YouTube “Um botânico no apartamento”, em que exibe plantas de sua coleção e dá dicas de cultivo. A audiência do canal, hoje com 491 mil inscritos, mais do que dobrou durante a pandemia. Em um perfil homônimo no Instagram, ele tem 153 mil seguidores.
Em agosto de 2020, Gonçalves publicou uma foto ao lado da spiritus sanctis, que descreveu como a planta “mais rara e desejada do mundo” e “o inatingível Santo Graal das plantas”.
Doutor em botânica e professor de Biologia no Ensino Médio em Belo Horizonte, ele diz ter ganhado a planta de um amigo colecionador.
“Preciosidade, tesouro, singularidade, originalidade, raridade, extravagância, excentricidade, beleza, santidade”, prosseguiu Gonçalves no post, acrescentando que a espécie é leiloada no exterior “por valores exorbitantes” e “quase foi extinta da natureza pelo extrativismo”.
A publicação gerou reações diversas. Enquanto muitos o parabenizaram pela planta, alguns disseram que a publicação poderia incentivar a extração de uma espécie seriamente ameaçada.
“Como biólogo, acho um VEXAME ver um botânico exaltando uma planta praticamente extinta como objeto de consumo, desejo, status, exibicionismo”, protestou um usuário.
Outro questionou: “Se ela é rara e quase extinta, não deveria ser recolocada no seu ambiente natural?”
‘Cegueira botânica’
Gonçalves discorda das críticas. Ele diz que o objetivo da publicação foi ampliar o conhecimento sobre a planta e combater a chamada “cegueira botânica”.
“Muita gente olha para uma planta e pensa que é um mato. Eu mostro que os matos têm nomes, utilidades e devem ser preservados”, afirma.
Ele diz ainda que sempre desestimula a retirada de plantas de seus ambientes naturais, mas faz uma ressalva: “Toda planta que existe no planeta e é comercializada veio em algum momento da natureza”, diz.
Para ele, a pressão sobre as plantas raras se reduziria se viveiros fossem autorizados a reproduzi-las em larga escala para a comercialização.
Plantas como ‘troféus’
Outro brasileiro a possuir uma spiritus sancti em sua coleção, dono do perfil @jardineirosurbanos no Instagram, Flávio Yukio Motonaga afirma à BBC que muitos vendedores de plantas raras “são descendentes de índios que usam desse trabalho como parte de sua subsistência”.
Para ele, muitos colecionadores dessas plantas têm assumido papel equivalente ao de pequenos jardins botânicos, ajudando a conservá-las fora de seus locais originais.
Mas Motonaga, que também diz ter ganhado sua spiritus sancti de outro colecionador, critica a exposição dessas espécies como “troféus”.
Para ele, essa é a “maneira mais popularesca, classista e egocêntrica que há para tratar de uma planta ou de qualquer outro tema possível nas redes sociais”. “Sou contra esse ‘marketing de luxo'”, completa.
Em alguns dos posts em que exibe a spiritus sancti, ele se limita a escrever o nome da espécie na legenda.
Reação em cadeia
Porém, para Leyde Nayane, bióloga pela Universidade Estadual do Piauí e doutora em Botânica pela Universidade de São Paulo (USP), a simples exposição de plantas raras por colecionadores em redes sociais pode estimular sua comercialização.
“Quando alguém coloca um conteúdo sobre uma planta rara, inevitavelmente atrai pessoas interessadas em comprar e vender essa planta e cria condições para que elas se conectem”, ela diz.
Em posts no Instagram sobre essas espécies, são comuns os comentários de usuários que perguntam sobre como adquiri-las.
Segundo Nayane, a extração de plantas de seus ambientes naturais gera reações em cadeia que impactam vários outros seres.
Uma planta como a Philodendron spiritus sanctis, por exemplo, pode servir de abrigo para lagartos, sapos e lesmas. A planta habita uma única região serrana, que abriga outras espécies que também só existem ali e dependem de um equilíbrio delicado para sobreviver.
A extinção da spiritus sanctis, portanto, pode favorecer o desaparecimento de outras espécies.
Para Suzana Ursi, professora de Botânica da USP e vice-diretora do Parque Cientec, influencers que se popularizaram por causa de suas “urban jungles” deveriam mostrar plantas raras apenas em seus ambientes originais.
“Estamos fazendo com as plantas o que já fazemos com as pedras preciosas e com os carros”, critica Ursi. “Entramos numa lógica de antropocentrismo e consumismo que é o contrário do bem-estar que esperamos ter ao estar perto da natureza”, diz.
A alta procura por plantas tem inflacionado os preços em lojas e viveiros brasileiros – e não só entre espécies decorativas. Uma loja na zona leste de São Paulo anunciava uma “oferta” em outubro: mudas de tomateiro, normalmente vendidas por R$ 99,90, estavam saindo por R$ 79,95.
Ursi questiona ainda a noção de que permitir o cultivo comercial de espécies raras solucionaria o problema. Para ela, assim que uma espécie rara se tornasse comum nas lojas, os colecionadores passariam a cobiçar outras plantas incomuns, deslocando a pressão para novos alvos.
Isso porque muitos deles não estariam realmente interessados nas características das plantas, mas sim em ter espécies que os outros não tenham. “Hoje exibir uma planta rara nas redes sociais significa ganhar mais likes e seguidores, e isso tudo se traduz em mais dinheiro e mais patrocinadores. Virou um grande negócio”, afirma.
Para ela, porém, colecionadores podem ajudar com a conservação de plantas raras. Ela cita como exemplo colecionadores de orquídeas que têm se aproximado de instituições de pesquisa e ajudado a devolver espécies raras para seus ambientes originais.
Plantas ameaçadas no Mercado Livre
Em anúncios no Mercado Livre, vendedores brasileiros frequentemente destacam a raridade das espécies de plantas ofertadas.
A BBC encontrou anúncios de cinco espécies ameaçadas, em sua maioria orquídeas e cactáceas.
Uma Laelia jongheana, orquídea natural de regiões serranas de Minas Gerais que hoje está na categoria das espécies “em perigo”, foi anunciada no site por R$ 374,90.
Outras espécies eram oferecidas por valores equivalentes aos de plantas em supermercados.
Oriundo da região semiárida da Bahia, o cacto Melocactus glaucescens foi anunciado por R$ 35 no Mercado Livre. Em seu ambiente natural, estima-se que só restem 250 exemplares adultos da espécie.
Questionado pela BBC sobre os anúncios, o Mercado Livre os retirou do ar e disse em nota que “trabalha de forma incansável para combater o mau uso de sua plataforma, a partir da adoção de tecnologia e de equipes que também realizam buscas manuais”.
“Diante disso, assim que identificados, tais anúncios são excluídos, e o vendedor, notificado”, afirmou a empresa.
A BBC perguntou por que o Mercado Livre não bloqueava anúncios com nomes de espécies ameaçadas, mas a companhia não respondeu.
Mercado global
No exterior, plantas raras brasileiras desfrutam de status especial entre colecionadores e podem ser vendidas legalmente.
No portal de vendas Etsy, há exemplares da Philodendron spiritus sancti anunciados por valores que chegam a R$ 152 mil.
No Instagram, a espécie é exibida por vários perfis dos Estados Unidos e Europa, mas também de países asiáticos como Japão e Tailândia.
O youtuber e vendedor de plantas Fahri Orchid, que vive na Indonésia, diz à BBC que indivíduos jovens da espécie costumam ser vendidos no país por 100 milhões de rúpias indonésias – o equivalente a R$ 39 mil.
“Acho que as pessoas compram por prestígio, e alguns amantes reais da plantas querem colecionar um item raro”, diz o indonésio, que tem 104 mil seguidores no Instagram e 157 mil no YouTube.
Orchid diz acreditar que as spiritus sanctis hoje à venda na Indonésia tenham todas sido reproduzidas localmente, e afirma que muitos compradores sabem que a espécie está ameaçada no Brasil.
Apesar da popularidade da planta, ele diz não achá-la tudo isso.
“Honestamente, a Philodendron spiritus sancti não está na minha lista de desejos, eu não gosto muito dela”, afirma.
Seu principal objeto de cobiça é uma parente colombiana, a Philodendron patriciae, anunciada por até R$ 12 mil em sites especializados.